terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Letícia

Meu nome é Letícia Mota e, como todo o mundo – ou quase todo o mundo – eu minto. Eu sei; isso não é coisa para se orgulhar. Mas o que posso fazer? Mentir é tão natural quanto respirar. E dizer a verdade, na maioria das vezes, dá muito trabalho. Por exemplo: eu encontrei um dia desses um antigo colega que eu não via há muito tempo, e ele meu perguntou se eu havia sentido saudades dele; eu disse que sim, e não precisei dizer mais nada; mas se eu tivesse sido autêntica com os meus sentimentos e tentasse dizer a verdade – que eu gostava muito dele, mas não a ponto de me sentir triste com sua ausência, eu iria me enrolar toda. Então, mentir no momento adequado é tão importante quanto dizer a verdade.

Eu considerei que o começo do meu texto estava muito bom, em parte porque finalmente, depois de uma semana de embromação, consegui escrever algumas linhas, e em parte porque eu estava atrasada e não iria mais escrever coisa nenhuma. O certo é que eu comecei, e seja lá onde isso vá dar, eu espero que esteja pronto na segunda-feira. – Ah, e só para constar, hoje é sexta-feira.
– Letícia, eu já estou ligando o carro! – Esse grito foi da minha mãe, que começou a gritar desde as 6:30. Não sei se é por causa da TPM, ou se é meramente pelo fato de ela ter que pegar no trabalho as 7:00; ter que me levar ao colégio, que fica a vinte minutos daqui; e ter todo o transtorno de voltar no tempo, para fazer o relógio da sala, que agora aponta para as 8:00, voltar a estar em 7:00 assim que ela entrar no trabalho, rumo a sua importante reunião.
Eu respondi, bocejando lindamente:
– Só um minuto.
– Eu só queria saber – ela começou dizendo, com aquela sua ironia de baixo nível que eu tanto odeio – quanto demora um minuto dentro do seu mundo? Porque no meu mundo, aquele mundo que te sustenta, eu serei demitida se decorrer apenas mais um minuto na sua conta muita louca!
Depois de perceber, quase nas entrelinhas, que fui chamada de alienada pela minha própria mãe, eu fiquei sem ter como argumentar. Enfiei na mochila os dois últimos livros a que faltava enfiar, e fui para o carro. No caminho, minha mãe enveredou em uma conversa sem interlocutor (o interlocutor deveria ser eu, se eu não estivesse com o pensamento à deriva); o assunto abordava uma filha de uma amiga dela que foi pega em atos libidinosos (eu espero que a minha mãe saiba que eu sei que a expressão “ato libidinoso” queria encobrir a palavra “sexo”, que, por alguma razão, ela me poupou de ouvir). Aí, eu pensei: se mentir é uma coisa tão errada, a gente não deveria fazer isso para nossas mães. Eu mesma mentir várias vezes para a minha, e continuo a mentir. Na verdade, eu não minto; eu apenas me esqueço de mencionar certos detalhes. Detalhes do tipo: eu bati com o seu carro enquanto arriscava umas voltinhas pelas proximidades... eu viajei para a Argentina quando eu disse que fui dormir dois dias na casa da minha amiga... eu não sou mais virgem, e já fiz “atos libidinosos” sem proteção.
– É um absurdo! – lá ia ela dizendo. – Ela tinha acabado de fazer quinze anos, e já pensava em... – rolou uma pausa dramática – ...fornicar.
Eu nada respondi. Mas não pude deixar de pensar que desta vez ela tinha se superado ao tentar não utilizar as palavras usuais:
Fornicar. Meu Deus! Eu não escuto essa palavra desde que... desde que minha avó era viva e começava a falar mal das mulheres de hoje em dia.
Depois disto, eu dei graças a Deus que a carona havia chegado ao fim, e que eu não iria escutar mais nada. Desci do carro e, como sempre, minha mãe me alertou:
– Não vá fazer nada que a minha mente direitista não consiga conceber, e nunca – em hipótese alguma, se meta em situações que a deixe vulnerável a cometer besteiras.
– Certo, mãe – eu respondi, sem muita animação. – E me desculpa por atrasar a senhora, mais uma vez.
E ela esforçou-se em se esticar lá do seu banco, para chegar ao banco do passageiro, e me dar um beijo no rosto. Então eu me virei, muito embaraçada, para o lado da escola. Era incrível como minha mãe nunca se tocava; eu já tinha 16 anos. Ninguém bom da cabeça deveria beijar seus filhos bem na frente de todo o colégio; ainda mais em um colégio em que eu não era a pessoa mais popular, digamos assim. Quando se é bonita, como (modéstia à parte) eu sou, você certamente é muito popular entre os garotos. E se você dá atenção aos garotos (assim como eu faço), isso gera o ódio das garotas. E como são justamente as garotas que decidem quem será popular ou não, eu me considero impopular.
Eu já estava na sala de aula, esperando pela aula do professor Soares, quando Felipe, meu namorado, chegou ali (na verdade eu não sei se ainda estamos namorando). Ele olhou para mim bastante sério, o que só poderia indicar duas coisas: ou ele tinha descoberto tudo e ia terminar o namoro, ou ele tinha descoberto tudo e me perdoaria. No fim, tanto faz; os homens sempre parecem bravos a principio. Mas aí a gente joga um charme, conta uma mentirinha aqui e ali, ajusta tudo, e pronto.
– É, ou não é? – ele me perguntou sussurrando.
– Se você me disser primeiro o que significa “é”, e o que significa “não é”, talvez eu possa dar uma resposta satisfatória.
– É verdade? – ele voltou a perguntar, com muita discrição.
– Hum... – fingi estar pensando. – Depende de qual é a mentira. Se você não apresentar fatos, como é que eu posso saber se algo é verdade ou não.
– Você sabe aonde eu quero chegar!
– Bom... pelo que vejo, você quer me acusar de algo. E até onde sei, um advogado não consegue elaborar uma defesa sem antes saber do que estão acusando o réu. E mesmo um juiz não pode condenar alguém se não houver acusações. O que você quer? Que eu fale todas as verdades e todas as inverdades até que se atinja o ponto que você quer?
– Não brinca comigo, Letícia! – ele disse, abrindo mão de sua antiga compostura (Por que os homens nunca gostam de jogar nossos jogos de detectar quem está bancando o imbecil? Será que é por que eles sempre saem como imbecis no fim?) – Pare de ser infantil, e me diga se você me traiu ou não.
Agora foi a minha vez de usar sussurros:
– Você não confia em mim? É claro que eu não traí. – Agora eu tinha que dizer as palavras que me colocariam em melhor situação. – E se você vai continuar acreditando em tudo aquilo que ouve, é melhor parar por aqui mesmo.
– E como você explica...
Eu estava pronta para responder o que quer que fosse, mas o meu professor e a sua careca reluzente chegaram por ali, e interromperam tudo. Ele fez uma daquelas piadas que só os professores têm a capacidade de fazer:
– Se esse casalzinho aí não fizer objeções quanto ao início da aula, eu poderia me sentar, e talvez pudéssemos começar o aprendizado. Mas se quiserem um curso intensivo de como ignorar o professor, não serei eu que irei me sentar. Se esse for o caso... deixem por conta da senhorita Letícia e do senhor...
Felipe foi embora, não sem antes me lançar um olhar de desapontamento. Antes de começar a aula, o professor Soares aproveitou para me perguntar se eu já havia chegado, pelo menos, à metade do meu texto, e eu, muito sucinta, respondi: “Com certeza, professor.” E o resto da aula transcorreu muito bem.

Mais tarde, no pátio, eu olhava quietinha lá do meu canto para alguns pombos que acabaram de aterrissar. Foi engraçado. Aquilo me trouxe umas lembranças estranhas, mas eu nem me lembrava que pombos tinham, alguma vez, feito parte da minha vida. Talvez seja bobagem minha, mas, às vezes, nos atemos a coisas que consideramos simples e vulgar, mas que nos leva a recantos prazerosos em nossas mentes. Bem, tudo isso se desfez, pois Felipe vinha até mim, e gostei de ver que sua feição mudara; agora carregava um sorriso, e embora fosse um sorriso triste, me fez acreditar que tudo iria ficar bem. Ele sentou-se ao meu lado.
– Não aconteceu nada entre mim e o Rodrigo – eu disse com um sorriso simplório.
Isso era mentira. Nós tínhamos ficado um dia inteiro juntos, e enquanto eu estava com ele, não pensei no Felipe um momento sequer. Não passamos do beijo, porque eu não tive coragem de ir mais além, mas, de qualquer jeito, isso não estava certo. Eu não sei o que acontecerá de agora em diante; sei apenas que não posso contar nada ao Felipe, ou tudo vai piorar para mim. Alguns podem chamar isso de egoísmo, e deve ser mesmo, mas acho que o ditado “É melhor um pássaro na mão do que dois voando” não se aplica a mim; eu sempre quis todos os pássaros a minha disposição sempre que eu precisasse.
– Tudo bem, tudo bem; esquece isso. – Nos beijamos por um longo tempo, e eu fiquei super feliz que a coisa se ajeitou.

Eu estava ali, na minha escrivaninha, debruçada sob o meu caderno. Nenhuma idéia me ocorreu, e eu já estava lá há algum tempo. Ouvi passos vindo na direção do meu quarto, e segundos depois, minha mãe abriu a porta. Ela me fitou com um olhar tipicamente materno; um olhar de estima e orgulho, que nos diz que nunca ficaremos sozinhos, e que sempre exala algum tipo de cumplicidade, mesmo que (e é o nosso caso) não exista tanta cumplicidade assim.
– Já jantou? – ela perguntou; havia uma estranheza em seu olhar, que transcendia o simples olhar materno. Era um olhar que eu não sabia interpretar, tal sua inovação e mistério.
– Sim – eu disse, e não pretendia dizer mais nada. Mas achei, segundos depois, que eu deveria acrescentar algo. – Quando eu terminar de escrever umas coisas aqui, eu desço até a sala, tudo bem?
– Está bem. Agora eu vou procurar algo no fundo da geladeira para comer; estou morrendo de fome.
Ela distanciou-se e, tendo chegado à porta, soltou um beijinho para mim. Eu sorri e retribuí; muito sem jeito, admito. De repente, voltei a refletir sobre o assunto mentira, e para que fins a usamos:
Por que eu não menti quando fui perguntada se já jantei?, pensei eu. E era óbvio: porque eu não tinha necessidade. Responder àquilo não ia fazer diferença; não ia me colocar em risco; não tinha importância para ninguém. Então...
Peguei o lápis e recomecei a escrever.

Mentir é, antes de tudo, uma tentativa de esconder algo. Não mentimos simplesmente por que mentir é um hábito divertido. Não. Mentimos para que as coisas fiquem sob controle, para que o que está em volta se torne mais macio para nós. Quando paramos para pensar sobre o ato de mentir, quase sempre chegamos à impensada conclusão de que é muito cruel fazer isso. Pode ser; mas, além disso, mentir é uma forma de se proteger, se proteger dos nossos defeitos. Ilusória perfeição. É isso o que queremos passar, na maioria das vezes, quando mentimos.
Ao mentir, perdemos um pouco de nós mesmos. Pois precisamos que os outros nos entendam um pouco, para que possamos entender melhor quem somos. E esse é todo o problema de quem é mentiroso. As pessoas não as vêem. Essa é a intenção; mas, mesmo assim, ao longo do tempo, essa invisibilidade se torna um saco.

Escrever isso não tinha me feito muito bem. Talvez eu tenha entrado fundo demais nas minhas verdades ao ter que entender minhas mentiras, e com isso fiquei com uma idéia ruim de mim mesma. É o que acontece quando se pára para analisar rigorosamente a si mesmo; pois, a bem da verdade, se entender por completo é um processo arriscado e, por vezes, doloroso. Diante de tudo isso, abandonei tudo (pelo menos por hoje) e me deitei na cama.
Cerca de trinta minutos mais tarde, minha mãe chegou de mansinho no quarto e deitou-se ao meu lado na cama. Eu não estava dormindo, mas continuei sem me mexer. Pensei em perguntar se havia acontecido algum problema, e, outra vez, fui incapaz de estabelecer contato. Então, deixei o tempo correr. E fiquei surpreendida ao me sentir envolta em um abraço, e mais surpreendida fiquei ao receber um cafuné, que me levou por uns instantes de volta a infância. Foi ótimo, principalmente porque não existia ninguém para testemunhar aquilo. Naquele momento, meio que voltamos a ser mãe e filha de fato, sem mais empecilhos.
– Eles crescem, ganham vontade própria... – ela murmurou, tendo passado uns minutos. – E não mais que de repente, rechaçam-se ao sentimento materno, pois já se acham independentes demais, já se acham bem-resolvidos demais. – Com um suspiro, a frase acabou.
Eu não sabia dizer se minha conseguiu notar que eu não estava dormindo, ou se foi pura coincidência. Mas, em todo o caso, seu comentário soou como aviso. E então eu pude solucionar o significado daquele olhar: era um olhar carente da minha proximidade; e me fez sentir o quanto eu vivia sozinha dentro de mim. Se eu não deixava que a minha mãe invadisse meu espaço, eu adquiri a certeza de que não iria deixar qualquer outra pessoa o invadir tão facilmente. Isso pode não ter lá muita lógica, se pensar que as pessoas realmente não se sentem bem ao declarar certas coisas a própria mãe; mas o fato é que eu achava que tinha uma ótima relação com a minha, apesar de a toda hora esquecer-me de mencionar aqueles detalhes. E se fosse diferente? E se eu a considerasse como uma confidente? Seria, no mínimo, muito útil. Mas não era assim.
Esses questionamentos caíram por terra, pois parece que as mãos das mães são mágicas e nos faz sentir um sono profundo; isso deve estar ligado ao desejo delas de terem os filhos dormindo, pois enquanto estão dormindo, nada de muito grave acontecerá. Eu adormeci e o dia terminou.

Acho que as coisas mais marcantes da minha vida aconteceram num sábado... o primeiro beijo... começos de namoro... términos de namoro... algumas notícias felizes... e... minha iniciação sexual. Então o sábado é o melhor dia da semana, certo? Eu tenho milhões de motivos para amar os sábados; mas não esse sábado. Eu passei metade dele enfurnada no meu quarto, sem fazer nada aproveitável; apenas pensando na vida, preguiçosamente. E nesse aspecto, os quartos são sempre ótimos. O quarto (principalmente o quarto de uma garota) é um templo sagrado; lugar onde tudo tem que correr ao nosso modo; uma fortaleza onde poucos aventureiros têm a audácia de pisar...
– Olha, eu estou entrando – minha mãe disse ao invadir o quarto. – E se estiver nua, não se preocupe; além de eu ser mulher, você não tem nada aí que eu já não tenha dado uma boa olhada.
Bom, pelo menos devia ser.
– Seu pai no telefone – ela disse, quase me jogando o celular na cara.
Eu atendi:
– Oi pai.
Tudo bem com você?
– Tudo sim.
Anda muito ocupada, é? Faz semanas que não vem me ver. Quer que eu vá te buscar? A gente pode sair para algum lugar. Naquele esquema paternal que você adora; você escolhe, eu pago tudo. Que tal, hein?
– É que... – não resisti, e comecei a rir. – É que tenho que terminar um trabalho da escola. Adoro esse esquema rentável, mas não posso.
Tudo bem, então. E como você está indo na escola? Notas altas?
– Digamos que eu não estou jogando fora o seu dinheiro...
Certo, ele disse, com um sorriso desconfiado. Agora tenho que desligar. Tchau, filha; beijos.
– Tchau.
Embora seja, nos dias de hoje, muito comum ter pais separados, eu ainda achava isso estranho. Quando os meus pais se separaram, eu não tinha idade suficiente para compreender o significado disso, de modo que não me recordo o que isso me causou. Mas agora, tendo capacidade de analisar a situação, eu fico com a sensação que meu pai não representa um pai de verdade; mais parece um tio distante, que de vez em quando encontra a sobrinha e a enche de mimos. Mas, por incrível que pareça, ele consegue tirar de mim mais informações do que mãe consegue. Talvez por existir essa distância, talvez seja por ele ser mais talentoso mesmo; ou talvez seja pelo fato de ele falar muito, e com isso acabe me vencendo pelo cansaço.
Minha mãe pegou de volta o celular. E então parou no tempo, ponderou durante segundos, e disse:
– Tem alguma coisa que queira me contar? – em seu olhar havia um quê de irritação.
– Ah, não sei. Acho que não.
– Hum! Certo. – Ela deu meia-volta, balançou o celular nas mãos, e partiu.
– Mãe! – eu a interceptei. Levantei da cama e fui até onde ela estava, perto da porta. – Aconteceu algum problema? Foi o seu trabalho? Eles não lhe demitiram não, não é?
– Aconteceu que eu criei uma filha com todo carinho do mundo, dei tudo do bom e do melhor, e ela, com todo o seu egoísmo, não confia em mim! É simplesmente esse o meu problema!
Eu fiquei furiosa porque, de repente, sem nenhum tipo de preparo, ela me jogou isso na cara. E respondi de uma maneira imbecil, mas foi tudo o que me veio à mente:
– Sabe do que a senhora precisa? De um namorado. Só assim ia parar de me encher o saco!
– Não fale assim comigo, mocinha! – Ela pareceu reavaliar o tom que iria utilizar. Fez um sorrisinho de sabedoria, e prosseguiu: – Quem disse que eu não tenho um namorado, hum?
– Bom... eu nunca vi.
– Pelo que me consta – ela recomeçou a falar; desta vez sim, muito irritada – você nunca trouxe aqui esse tal de Felipe! Também nunca me contou sobre a viagem que fez para a Argentina com seus amigos muito suspeitos. – Impulsionada pela TPM, ela avançou. – E muito menos, sequer tencionou me contar minimamente como havia sido a sua primeira relação sexual no sofá da minha casa!
Não, isso não podia estar acontecendo. Que coisa mais surreal era essa? Esses eram os meus maiores segredos, e ela conhecia todos eles. Durante todo esse tempo eu pensei que era a única detentora de mim mesma, mas não era.
– Como é que a senhora sabia? – eu perguntei, sem ter mais o que fazer naquele momento.
– Sou sua mãe, e isso já basta para que você não possa esconder nada de mim.
Eu pensei em dizer algo, olhei para ela, que agora estava sentada ao meu lado, na cama. Tive a impressão que ela chorava, ou ao menos os seus olhos lacrimejavam, mas não me importava; eu estava perplexa, e só pensava em mim. Então, percebendo que não estava nem um pouco disposta a encará-la, pedi para que se retirasse do meu quarto. Ela acatou, e me deixou sozinha.
Uma mentirosa muito desajeitada eu devo ser, pensei, para achar que mentia, enquanto tudo estava, no fundo, muito às claras. Que burrice!
Passado um tempo, que serviu para que eu reavaliasse os acontecimentos, e que me mostrou que aquilo, afinal, não era o fim do mundo, minha mãe voltou ao quarto. Ela disse que entendia o porquê de todas as minhas omissões, e que também eu não precisava contar tudo a todo mundo. Até aí estava tudo maravilhoso. Mas claro que haveria um “porém” depois disso.
– Porém, sempre tem que existir alguém que nos sirva de receptáculo de segredos, e, pelo que sei, você não tem esse alguém. Eu tenho tentado ser esse alguém, mas você nunca me deixou chegar muito perto. Gostaria que isso mudasse.
– É tão estranho – comecei a expressar. – Eu também gostaria que a senhora fosse... meu receptáculo. Mas não consigo me aproximar também.
– Então, a partir de agora, vamos corrigir nossos modos de fazer essa tentativa. Não deve ser tão difícil, não é? Poxa, moramos na mesma casa. Não é possível que não consigamos manter um bom relacionamento. – Ela me abraçou, e foi estranho. Mas me fez perceber que não permaneceria estranho por muito mais tempo.
Assim, meu sábado, que já havia começado vagaroso, terminou numa monotonia só. No domingo, eu e minha mãe nos evitamos; ou seja, não tocamos no assunto, e nem em qualquer outro. Acho que foi uma tentativa da parte dela para me fazer refletir, e até certo ponto, funcionou; pois, sozinha, cheguei a algumas conclusões benéficas. Com o espaço que tive, pude reavaliar uma porção de coisas, e pensar em mudar alguns de meus ludibriosos hábitos. Dessa forma, a segunda-feira se iniciou mais uma vez.
Eu ainda não tinha completado o meu texto. Ia tentando finalizá-lo no caminho para o colégio, mas nenhuma idéia suficientemente boa veio até minha cabeça. Minha mãe me deixou no colégio, e enquanto a primeira aula (de História) não começava, fiquei sentada num dos bancos do pátio, tentando, sem muito sucesso, escrever mais umas linhas, mesmo que fosse apenas para aumentar o tamanho do texto.
Felipe sentou ao meu lado, de repente; exibia aquele mesmo olhar sério de sexta-feira, mas acompanhando a essa seriedade, havia uma determinação ali. Coisa que me assustou profundamente.
– Sabe, Letícia – ele disse, com a mais fria das expressões –; eu andei pensando, e cheguei a conclusão de que o pior de tudo nem é você ser essa mentirosa que é. O pior de tudo é você pensar que sempre vai conseguir enganar as pessoas.
– Do que está falando?
– Qual é o critério que você usa? O do “quanto menos você souber, melhor?” Cansei de ser idiota! Se você quer ficar jogando os seus joguinhos, continue, e eu acredito que alguém vá jogar com você, mas infelizmente eu nunca mais vou fazer parte dele de novo. Seja a grande vencedora que é. – Ele deixou o banco, e se afastou de mim. – Cresce, garota.
– Seja lá o que foi que você ouviu...
– Pára de mentir, Letícia! – ele gritou, não conseguindo guardar a raiva dentro de si. – E não é só para poupar as pessoas que convivem com você. É também para você não sofrer com a farsa que é para si mesma.
E assim terminou meu namoro, e, por conseguinte, minha curta vida sexual. Nem bem tinha começado a sentir esses novos desejos, e já me perdi por não saber controlá-los.
– Não pude deixar de escutar sua conversa, e...
– Sai daqui, Rodrigo! – expulsei-o. Eu não quero mais nada; não quero mais nem o Felipe nem o Rodrigo; não quero mais pensar em sexo, por enquanto. Irei recomeçar a minha adolescência do zero.
Toda essa confusão, por algum motivo, me inspirou, e escrevi o resto do meu discurso, que seria apresentado na última aula de hoje.

Respirei fundo, olhei mais uma vez para o auditório formado pelos meus colegas de classe, e continuei a última parte do discurso:
– Minha relação com a mentira é confusa, assim como é confusa todas as relações com coisas que nos são muito próximas. O que aprendi com a mentira é que ela não é assim tão natural como eu disse anteriormente. Ela tem que ser pensada, pesada, e usada em momentos oportunos. A mentira parece ser controlável, mas às vezes não sabemos até que ponto a estamos sustentando. Por exemplo: eu pensei ter escondido muito bem para a minha mãe que viajei para a Argentina, até que eu descobri que ela sempre soube. E isso me tirou toda a segurança. Então, minhas conclusões sobre a mentira são que: a mentira é uma artimanha louvável, mas é uma arriscada escolha, que nos leva a cometer atos corajosos, mas que, lá no fundo, não faz nada bem a nossas almas.
Aplaudiram, e eu acho que isso vai me render talvez uma nota 8.

A conversa entre eu e minha mãe esfriou na hora do jantar. Então, uma curiosidade me bateu, e perguntei:
– A senhora sabia sobre o carro também?
– Que carro, Letícia? – Ela levantou abruptamente. Parecia que eu tinha tocado num ponto fraco dela.
– Que carro, mãe? Não sei do que está falando... – tentei desconversar.
– Espere aí... – ela disse muito calmamente; mas depois adquiriu uma raiva que só podia ser proveniente da sua TPM. – Foi você quem amassou a traseira do meu carro, e teve a cara-de-pau de dizer que eu, provavelmente, tinha esbarrado em algum outro carro no sinal, sem perceber? Eu não acredito! Você é um monstro, Letícia!